Esporte

As finanças do Vitória em 2019: a singular crise rubro-negra tem menos a ver com dívidas, mais com a falta de receitas cotidianas

Paulo Carneiro reassumiu e cortou gastos por todos os lados. A conta ainda não fecha. Área comercial e relacionamento com torcida precisarão melhorar muito para tirar clube do vermelho

O futebol brasileiro passa por uma crise financeira generalizada – passaria de qualquer maneira, por causa das decisões equivocadas de seus dirigentes, e teve o mau estado agravado pela pandemia do coronavírus. E o Vitória, na segunda divisão, ainda convive com notícias negativas e afirmações alarmantes por parte de dirigentes há tempos. 

  • Em agosto, o técnico Osmar Loss é demitido após sequência de derrotas. Paulo Carneiro, novo presidente, diz que “o resultado venceu o processo num clube que atravessa a pior crise história”
  • Em meio a uma reestruturação do departamento de futebol, o novo dirigente contrata 22 jogadores e acha pouco: nas contas dele, em entrevista ao GloboEsporte.com, “precisaria contratar uns 35”
  • Em vez de centrada na instituição, a comunicação volta ao personalismo dos tempos em que Carneiro liderou o clube e conquistou títulos. Decisões são anunciadas por ele em suas redes
  • Salários de jogadores e comissão estão constantemente atrasados em meses. Novas ações judiciais aparecem. O cartola afirma tomar medidas necessárias para reduzir custos e lidar com passivo
  • Em março, no início da pandemia, o time de aspirantes é desfeito para cortar gastos. Carneiro afirma que o Vitória está longe de sair da crise financeira que foi imposta ao clube há mais de um ano
  • Em junho, o futebol feminino chama atenção por estar sem contratos e à mercê. O presidente diz que lida com um “saco de problemas”. Ele usa R$ 120 mil dados pela CBF para o feminino em outras finalidades

Isso sem falar no crônico estado de guerrilha da política rubro-negra, nos áudios vazados com respostas de Carneiro a torcedores e opositores, nas polêmicas via imprensa. O torcedor do Vitória não tem paz. 

Como é muito difícil entender a situação financeira de um clube de futebol apenas com adjetivação e gritaria, o GloboEsporte.com detalha os números descritos pela diretoria rubro-negra no balanço referente a 2019 – aliás, publicado com atraso em relação ao prazo legal

O que dizem os números…

Paulo Carneiro tem razão quando afirma com superlativos que o Vitória passa por uma crise histórica. E a maneira de se certificar disso está na comparação entre tudo o que se arrecada (faturamento) e tudo o que é devido (endividamento). Hoje, a diferença passa de três vezes. 

A relação entre receitas e dívidas do Vitória

Embora endividamento não tenha piorado, redução na arrecadação agrava situação do clube

O maior problema está na arrecadação. Na Série B, o Vitória não tem acesso ao dinheiro dos direitos de transmissão do primeiro escalão. Em vez de receber por volta dos R$ 60 milhões, fica com R$ 8 milhões. 

Aqui cabe uma explicação. Entre as receitas rubro-negras, existem R$ 6 milhões registrados como “luvas”. No gráfico, eles são classificados como televisão. Mas este dinheiro não entrou no caixa no decorrer de 2019. 

O Vitória – como todos os outros clubes brasileiros – terá de contabilizar as luvas recebidas pela assinatura do contrato mais recente de televisão, em 2016, aos poucos. Quer dizer: o dinheiro já entrou e saiu faz tempo do caixa, mas será reconhecido como receita ano a ano para cumprir com a regra contábil. Nada errado. Importante é entender. 

A segunda divisão atrapalha outras fontes de arrecadação. Bilheterias fazem pouco mais do que R$ 2 milhões; patrocínios, quase nada acima de R$ 1 milhão. Somas irrelevantes diante das necessidades. 

Ainda há um pouco mais de dinheiro a considerar, mas a maneira como a diretoria do Vitória o contabiliza dificulta qualquer entendimento. Premiações (com natureza de televisão), sócio-torcedor (com origem na torcida) e loterias foram juntadas na mesma linha do balanço financeiro. 

O que salvou o Vitória de crise pior foi a venda de jogadores. A parte boa é que elas existiram e deram um alívio em meio à secura de outras receitas. A notícia negativa é que jogador é um tipo de ativo esgotável. Ninguém garante que haverá sempre novas vendas a fazer. 

O perfil do faturamento do Vitória em 2019

Detalhamento insuficiente prejudica análise ao concentrar premiações e sócio em “outros”

Por parte das despesas, Paulo Carneiro tem feito o que prometeu durante a campanha eleitoral. Ainda que o clube continue a fechar balanços com deficit (prejuízo), o cartola tem cortado o que pode. 

A folha salarial do futebol profissionalé o principal indicador. 

  • R$ 50 milhões em 2017
  • R$ 40 milhões em 2018
  • R$ 22 milhões em 2019

Em questão de três temporadas, o elenco passou a custar anualmente menos da metade. Isso logicamente tem um impacto nas expectativas esportivas. Mas não havia muito o que fazer. Manter gastos acima da capacidade de pagamento seria ainda pior para presente e futuro. 

Entre custos administrativos – com cuidado na análise porque alguns itens têm importância contábil, mas não representam dinheiro que saiu do caixa – também houve reduções relevantes em relação a 2018. 

O risco na política da austeridade – novamente, na opinião deste jornalista: necessária – é o do austericídio. Sobretudo no futebol brasileiro de agora, em que receitas são mais variáveis e meritocráticas do que na época dourada do Vitória com Carneiro nos anos 1990 e 2000, economizar demais pode comprometer o futebol e até as finanças. 

Na diferença entre receitas e despesas, o clube baiano está se adaptando. E o problema tende a ser resolvido à medida que novas entradas de dinheiro aparecerem. Mas ainda há o endividamento. 

O perfil do endividamento do Vitória por vencimento

Administrações nocivas consumiram o caixa rubro-negro e pioraram perspectivas para o futuro

O Vitória esteve relativamente tranquilo alguns anos atrás. O dinheiro que tinha em caixa, resultado da venda dos direitos de transmissão na primeira divisão, mais especificamente das luvas pagas pela Globo, era suficiente para pagar todas as dívidas de curto prazo e ainda sobrar. 

Hoje, não há caixa. E as dívidas de curto prazo começam a apertar. Na virada do ano, havia R$ 36 milhões a serem cobrados por credores no decorrer de 2020. Muita coisa para um clube que faturou R$ 54 milhões. 

Essas são as dívidas mais relevantes no curto prazo: 

  • R$ 2,4 milhões para fornecedores
  • R$ 1,4 milhão em direitos de imagem, luvas e comissões
  • R$ 1,9 milhão em empréstimos bancários
  • R$ 2,9 milhões em obrigações tributárias
  • R$ 9,9 milhões em obrigações trabalhistas
  • R$ 3,1 milhões em parcelamentos fiscais
  • R$ 14 milhões em acordos a pagar

No longo prazo, estão parcelamentos de impostos não pagos no passado – inclusive o Profut da massa falida do Vitória S/A. Esta é a maior parte, e ao mesmo tempo a menos preocupante, desde que os pagamentos sejam honrados pelo clube. Ações judiciais com perdas tidas como prováveis somam “apenas” R$ 10 milhões neste caso. 

O perfil do endividamento do Vitória por tipo em 2019

Maior parte do problema (quase 80%) vem da massa falida da S/A e está renegociada via Profut

O Vitória está em crise financeira? Certamente. Não há como minimizar o fato de que, mesmo com reduções na folha e em despesas variadas, salários de jogadores e comissão técnica continuam a atrasar. 

O clube está na pior crise financeira de sua história? Também. Se dividirmos receita por dívida, como na abertura deste material, veremos que a diferença é a pior desde que se tem noção a partir dos balanços. 

No entanto, é importante para o torcedor entender que há crises de diferentes naturezas. A dívida não está nem próxima da registrada pelo Sport, por exemplo – esta descontrolada e ainda difícil até de saber, por falta de credibilidade, se corretamente dimensionada

O problema do Vitória é a falta de receita. A segunda divisão. A inanição em termos comerciais e de participação da torcida no faturamento. Se estivesse no Brasileirão, o clube teria perspectivas muito mais razoáveis, ainda que desafiadoras. Isso segundo o retrato pré-pandemia. 

Paulo Carneiro fez as primeiras correções: gastou menos. Agora precisará achar um jeito de recolocar o clube no topo para arrecadar mais. Só austeridade não resolverá. Se encontrar meios para seguir nesta jornada com menos gritaria e controvérsia, e mais paz, melhor. 

Fonte: Globo Esporte.

Redação

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